Sobre os ossos dos mortos - Resenha crítica - Olga Tokarczuk
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Sobre os ossos dos mortos - resenha crítica

Sobre os ossos dos mortos Resenha crítica Inicie seu teste gratuito
Sociedade & Política

Este microbook é uma resenha crítica da obra: Prowadź swój pług przez kości umarłych

Disponível para: Leitura online, leitura nos nossos aplicativos móveis para iPhone/Android e envio em PDF/EPUB/MOBI para o Amazon Kindle.

ISBN: 978-6580309696

Editora: Todavia

Resenha crítica

Janina Dusheiko

Janina Dusheiko é uma mulher idosa, vivendo sozinha e lecionando inglês para as crianças da cidade vizinha. Essa personagem é fascinada por astrologia, padece de várias moléstias e é uma grande admiradora das obras do poeta William Blake.

O vilarejo em que ela mora fica quase inacessível ao longo do inverno. Desse modo, a caça é um hábito comum dos habitantes locais. Janina, porém, tem o costume de desarmar as armadilhas montadas para capturar animais silvestres, fazendo várias rondas de manutenção com esse intuito.

Ela vive em uma região nos confins de seu país — a Polônia — nas proximidades da fronteira com a República Tcheca. Certo dia, Dusheiko descobre que um de seus vizinhos morreu.

Aparentemente, o homem veio a óbito após ter se engasgado com o osso de um cervo caçado ilegalmente. Janina, que é obcecada pelas previsões astrológicas, passa a se interessar por novas mortes que ocorrem no vilarejo, uma vez que todas acontecem em situações semelhantes à primeira.

Astrologia

Ela começa a acreditar que os responsáveis pelos assassinatos são os próprios animais que, de alguma forma misteriosa, resolveram se vingar pelas caçadas.

Outra característica interessante da senhora Dusheiko consiste no fato de não chamar as pessoas pelos seus nomes, preferindo apelidá-las à sua própria maneira.

Dessa forma, temos o policial chamado de “Capa Negra”, a vizinha “Acinzentada”, a colega “Boas Novas” e o vizinho “Esquisito”. Sua fixação pelo estudo dos mapas astrais de pessoas mortas revela mais sobre Janina do que acerca dos indivíduos analisados por ela.

Afinal, a astrologia é a "lente" através da qual ela enxerga o mundo e os fenômenos à sua volta. Um universo regido por forças da natureza, portanto, somente pode ser entendido pela revelação dos astros.

Pensamento mágico

Janina e o estranho planalto onde mora existem no limite entre a magia e a realidade. Todas as pessoas da cidade têm os mesmos dentes — longos e tingidos de azul.

Isso se deve a uma peculiaridade dos minerais presentes na água potável ou a algum tipo de alteração genética? Há um guarda-florestal que tem olhos de lobo, com pupilas oblongas.

Para aumentar o clima de perplexidade, um estranho é avistado na floresta, mas ele nunca sai à noite. O vilarejo, em si, é apenas uma pequena localidade, com policiais que se divertem com as histórias de uma senhora ingênua.

O mundo natural de Janina

A senhora Dusheiko é prosaica tanto sobre as coisas quanto sobre as pessoas, que descreve com extrema simplicidade e rudeza. Frequentemente, faz alusões a mulheres com bronzeados excessivamente artificiais e homens que pensam saber de tudo.

Porém, quando descreve o mundo natural, sua voz se enche de ternura. Um casal de cervos parados na neve são “pegos em meio a um ritual cujo significado não é possível entender”.

Avistar uma raposa perambulando pela mata é, para ela, como “reencontrar uma velha amiga”. Na primavera, Janina se “sintoniza” com energias novas e sutis que ninguém mais consegue ouvir.

Diante da morte

A construção dessa personagem de Olga Tokarczuk preenche de sentido a postura demonstrada na casa do homem morto. Neste instante, Janina é direta e, em certo sentido, fria, ao descrever o corpo como “um mero pedaço de matéria”.

A morte o reduziu, segundo Dusheiko, “a um objeto frágil, separado de tudo o mais”. Entretanto, isso não a impede de ficar triste e, até mesmo, horrorizada perante o cadáver.

Suas reflexões fúnebres prosseguem nesse tom: “o mesmo destino espera por mim, por Esquisito e por todos os animais de todas as florestas. Em breve, não seremos nada mais do que cadáveres”.

Diferentemente das pessoas no velório, ela não se preocupa em elogiar o morto, pois ele era um caçador — isto é, cometia crimes verdadeiramente monstruosos contra os animais.

Fonte mortal

Para Janina, a floresta sempre alimentará o caçador. Este, porém, nunca respeitará a natureza, tratando-a como se fosse uma propriedade particular. Somente quando ela percebe evidências de outra morte, fica realmente chateada.

Dusheiko avista a cabeça de um cervo decepada na cozinha do Pé Grande (assim ela nomeara um de seus vizinhos), e o resto do corpo massacrado e comido.

Na casa do amigo, a morte que ela registra, em sua mente, como crime, não é dele, mas do animal: “uma criatura devorou outra, no silêncio e quietude da noite”.

Uma fonte mortal chegou em seu planalto. Janina sente “uma vibração febril sob a grama, como se os vastos nervos subterrâneos, inchados pelo esforço, estivessem prestes a explodir”.

Agora que chegamos na metade do livro, vamos nos aprofundar na personalidade da personagem central e acompanhar a forma pela qual suas ideias conturbaram o seu pequeno vilarejo.

A vingança dos animais

Após a morte do caçador, outro homem — com o mesmo ofício — é encontrado morto. Seu corpo está cercado por pegadas. Janina, então, elabora uma teoria: os animais selvagens estão se vingando.

Em seguida, um empresário desaparece da cidade, e alguns dizem que ele fugiu com sua amante — comportamento que já exibira no passado. Mas, uma análise detida sobre os seus interesses comerciais revela a propriedade de uma delicatessen, uma criação de raposas, um abatedouro de bovinos e uma fábrica de processamento de carnes.

Aos olhos de Dusheiko, seu destino parece selado. A polícia, obviamente, ri dessa teoria. No entanto, os seus vizinhos começam a acreditar que ela possa ter razão.

Embora o fio condutor da narrativa seja, justamente, os mistérios que circundam essas mortes (ou assassinatos), é nos momentos de contemplação e devaneio de Janina que os leitores encontram a verdadeira força desta história.

Uma estrela de nêutrons

Nossa autora não escolheu o estilo de narração em primeira pessoa por acaso. Desse modo, ela conseguiu revelar as crenças de Janina acerca da influência direta dos astros sobre a vida das pessoas.

Ademais, evidencia o incômodo da personagem em relação à tendência que os seres humanos têm de se sentirem superiores aos outros animais, bem como sua decepção com a “falta de consciência” que temos a respeito da realidade que nos cerca.

Com efeito, os atritos gerados entre Dusheiko e os caçadores impulsionam toda a narrativa. Quando um deles afirma que “apenas” atiram em faisões, ela sente “uma onda de raiva, genuína, para não dizer ira divina”.

Ante tamanha insensibilidade, Janina sente que há um fogo queimando dentro de si, tal como uma “estrela de nêutrons”. Fica claro que, para a senhora Dusheiko, matar criaturas inocentes é, puro e simplesmente, assassinato.

Uma retórica estridente

Ao longo da maior parte do ano, os mortos começam a se acumular. Por exemplo, um homem é encontrado caído em um poço; os restos mortais de outro aparecem em um lamentável estado de decomposição junto a uma velha mina de argila.

Um terceiro é consumido pelos perigosos besouros de casca plana (cujo nome científico é “Cucujus haematodes”); ainda outro morre queimado. Convencida pelas pegadas de cervos que encontrou na neve em uma cena de crime e, também, por duas raposas que avistou de seu carro, Dusheiko tenta argumentar, cada vez mais intensamente e para a preocupação de seus poucos amigos, que os animais são os responsáveis pela matança.

Os “mortos” do título deste romance referem-se aos animais, não aos seres humanos. Assim, a indignação provocada pelo desrespeito à vida animal gera, na protagonista, uma retórica estridente: “Que tipo de mundo é esse? O corpo de alguém é transformado em sapatos, em almôndegas, salsichas, tapetes, os ossos são fervidos para fazer caldos. Bolsas são produzidas a partir da barriga de um ser vivente, muitos se aquecem com o pelo de outros, comem-lhe o corpo, cortam a carne em pedaços e os fritam em óleo quente.”

“Pode ser verdade? Esse pesadelo está realmente acontecendo? Tal assassinato em massa, cruel, impassível, automático, sem dores de consciência, sem a menor pausa para pensar, acontece no mesmo mundo em que muita reflexão é aplicada nas mais engenhosas filosofias e teologias.”

Janina Dusheiko jamais poderá se conformar com uma realidade na qual a dor e a morte são vistos com naturalidade. Ela não pode deixar de pensar que há algo terrivelmente errado conosco.

A réplica machista

Essa postura leva à réplica padrão: as mulheres idosas se tornam obcecadas com o bem-estar animal porque não têm nada melhor para fazer. Assim, é comum que mimem alguns bichinhos de estimação ou se envolvam demais na política local.

Na verdade, Janina tinha duas cadelas que ela chamava de “meninas”, cujas mortes ainda sofre intensamente. Por isso, envia longas cartas para a polícia, discutindo seu caso.

Em uma dessas cartas, a joia da coroa cômica do romance, ela enumera exemplos históricos de animais acusados de crimes: “um São Bernardo exterminou um enxame de abelhas, cujos zumbidos o impediam de trabalhar” ou “em 1934, na França, alguns porcos mataram e comeram uma criança. A porca foi condenada à forca, mas seus 6 filhos foram poupados, levando-se em consideração sua tenra idade.

Um lugar na sociedade

Essas cartas – junto ao tratado de Dusheiko sobre os males ideológicos das sociedades modernas – retratam sua firme oposição à agricultura industrializada e seus “campos de concentração”.

O seu posicionamento, porém, não é bem recebido pelas autoridades. De fato, tais atitudes apenas realçam a impressão que as pessoas têm acerca de sua excentricidade.

Como ela vive sozinha, os leitores nunca sabem se ela já foi casada ou se têm filhos. Ademais, Janina não se enquadra na figura tradicional da senhora idosa acolhedora, que gosta de cozinhar e possui um lar bem arrumado.

Essas características, contudo, integram a personalidade de seu vizinho, o Esquisito. Apesar de suas enfermidades e dores, ela não se permite exercer o papel de “pobre velhinha”, opondo-se às expectativas de quem considera que este seria o seu “lugar na sociedade”.

O sofrimento dos animais

A trama segue nessa toada, mas o cerne moral da obra é encontrado na delegacia, em uma crítica que se estende por páginas, articulando uma ideia, ao mesmo tempo simples e antiga, perturbadora e perigosa: o sofrimento dos animais importa.

O conceito se expande, em parte, pelos muitos discursos de Janina, mas, também, pelo simples fato de ela jamais renunciar a suas crenças. Apesar de toda a sua rudeza, e por mais que os homens na história a considerem “histérica”, a personagem se mantém como uma figura altamente interessante.

Notas finais

Cumpre ressaltar, por fim, que a presente obra trata de questões que, infelizmente, nossa sociedade ainda não solucionou. De fato, a humanidade prossegue com a destruição do mundo natural. Semelhantemente, as mulheres que denunciam esses problemas continuam sendo tratadas como excêntricas.

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Quem escreveu o livro?

Tokarczuk é uma escritora polonesa de grande prestígio, tendo sido premiada internacionalment... (Leia mais)

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